sexta-feira, junho 01, 2012

O Beliche

               

                 Acho que chegou a hora de mais um dos momentos mais significantes da minha vida, tendo em vista todos os momentos significantes que já vivi. Chegou a hora de desmontar o beliche. É isso mesmo, o beliche, alguns chamam de bicama, mas lá em casa sempre o chamamos de Beliche. Depois de 20 anos e alguns poucos modelos. Chegou a hora. Eu e meu irmão, 2 anos mais novo que eu, sempre, ou quase sempre, dormimos em beliche, desde que eu me entendo por gente, claro teve uma época que eu dormi em um berço, ele também, mas o que eu tenho mesmo em minhas lembranças é o tal do beliche. Sempre dormi na cama de cima, por ser o mais velho, numa tentativa de protege-lo de uma queda ou talvez uma questão de hierarquia fraterna mesmo, não sei.
                 O que eu lembro mesmo, como se fosse hoje, é que o beliche sempre significou muito em nossas vidas, mesmo sem que nos dessemos conta disso, ali era o sono compartilhado, era o papo e as piadas de moleque até altas horas ou até um dos dois cair no sono, era também no beliche o palco de espetáculos quase circenses e a arena de batalhas quase medievais, entre o pulo da cama alta pro chão, a tentativa de escalada da cama de baixo para a de cima, também sobravam alguns socos e pontapés, típicos de irmãos adolescentes, e diga-se se passagem, eu e meu irmão brigávamos muito, aquele tipo de briga que em 20 minutos se desfazia, e um já estava protegendo o outro se fosse o caso, e além de nossos pais, quem testemunhava nossas brigas e reconciliações era o beliche.
                 O tempo foi passando, fomos crescendo, a família foi crescendo, a casa já não era tão grande, tivemos a oportunidade de mudar de casa, mas não seria apenas uma mudança de ambiente, mas também de vida, uma casa, agora própria, um espaço maior, cômodos formatados na disposição de uma casa, não mais de um caixote como era a casa anterior. Mas ainda não seria a hora de desfazer o beliche, agora nosso próprio quarto. Já não brincávamos como antes, assim como não brigávamos com tanta frequência nem tão pouco intensidade, o quarto era agora uma espécie de sala de reunião somente pra eu e ele. Devido à todas as circunstâncias que a vida colocou diante de nós dois, o tempo que passávamos juntos era justamente na hora de compartilhar o beliche, agora com as responsabilidade que tínhamos, o cansaço e o sono eram maiores que a possibilidade de bater papo até altas horas. Já crescidos o problema agora era aguentar o ronco, o medo de que a cama de cima desabasse sobre a de baixo.
                 O beliche era uma espécie de pacto velado, sem necessidade de assinaturas, contratos ou dedos mindinhos entrelaçados. Era a certeza que mesmo depois de um dia todo longe de casa, era ali que iríamos nos encontrar quando a noite chegasse. E foi assim, durante um longo tempo. Não se tratava apenas de uma mobília doméstica, porém de um símbolo de algo que nunca prestamos tanta atenção, algo que só agora faz total sentido para mim.
                 Hoje. Contrariando a lógica da vida, que não tem lógica nenhuma, na contramão do senso comum, meu irmão, mais novo do que eu, está saindo do quarto, saindo de casa, deixando o beliche, vai pra sua própria casa, com sua esposa e sua filha, uma nova jornada, seguindo o passo natural das coisas, o que me deixa muito feliz, saber que meu moleque virou homem, que a responsabilidade e seriedade que sempre demonstrou desde criança, agora está sendo aplicado na prática, na chamada vida real (que muitas vezes parece um sonho surreal). É um momento novo em nossas vidas, de muitas descobertas tanto para ele quanto para mim, com certeza também de muitas dúvidas, principalmente para ele, o que é totalmente compreensivo. Estou muito feliz, por saber que compartilhar o beliche foi fundamental em nossas vidas, pois carrego em mim, além do sangue, a essência do meu irmão, e tenho certeza que ele também carrega um pouco de mim na vida dele.
                 Então chegou a hora de esvaziar o lado de lá do guarda-roupas, de dar mais um passo na minha vida, sair da cama de cima e ir para a de baixo, a única agora. Chegou a hora de desmontar o beliche, transformar o 2 em 1, trata-lo agora apenas como um móvel, mas só a parte física do beliche, porque o significado dele é eterno. A experiência, o amor, o carinho e o companheirismo, esse é indivisível, indestrutível. Por hora, só posso dizer: Vai lá meu irmão, segue tua vida, cuida da tua família, seja para eles o que você sempre foi e é para nós, e se um dia sentir falta do beliche, pode subir em meus ombros que eu te carrego.




Dedico esse texto ao meu irmão Filipe Martins.
(Te amo meu irmão, felicidade, sorte e sabedoria.)